ESTALAGEM DE PESSOAS E IMPRESSOS: SÍTIO SÃO
LUIZ, CASA DE DONA MARIA SENHORINHA (VILA DE CURRAIS NOVOS/RN - 1870)
Eva
Cristini Arruda Câmara Barros/Universidade Federal do Rio Grande do Norte[1]
Eixo
temático 1 - Circulação de idéias, discursos e modelos educativos
Introdução
As idéias circulam, por sua vez, também os impressos. Foi
seguindo essa trajetória contínua de uma circularidade cultural, de um ir e vir
sucessivo de valores e preceitos que, em 1870, um exemplar do livro Código do Bom Tom ou Regras de Civilidade e
de Bem Viver no XIXº Século, escrito pelo padre português José Inácio
Roquette, chegou à casa de D. Maria Senhorinha, no sítio São Luiz, localizado
nos arredores da Vila de Currais Novos, em uma região do estado do Rio Grande
do Norte conhecida como Seridó[2].
Pode-se dizer que a presença de um impresso como o Bom Tom, meio difusor de uma cultura
escrita, em uma sociedade essencialmente rústica, agrária e patriarcal, a qual
fundava grande parte de seus ensinamentos sob os traços da oralidade, é um fato
que instiga curiosidade. Por esse motivo, a presente pesquisa busca compreender
como um manual preconizador de cortesia, bons modos e civilidade, que traduzia
um estilo de vida europeu do século XIX, veio povoar o cotidiano e o lar de uma
seridoense, D. Maria Senhorinha, constituindo-se, anos depois, em um dos bens
legados à sua família, a família Dantas Pegado Cortez.
Para conseguir alcançar tal objetivo, foram abordados
referenciais teóricos que versam sobre hospitalidade, entendida como uma troca
de favores e valores entre seres humanos em tempos e espaços planejados; sobre
impresso, concebido como algo constitutivo de sentido e anunciador de uma
classificação e distribuição de discursos; bem como sobre representações,
definidas como práticas culturais que apreendem e organizam o real.
Por conseguinte, para ampliar e patentear a leitura desses
referenciais, foram utilizados algumas publicações regionalistas acerca do
Seridó antigo e uma descrição contendo o percurso de viajantes, comboieiros, pedestres
e tropeiros, feito por meio de estradas carroçáveis, entre Currais Novos e
Natal, da segunda metade dos anos de 1800 até 1927.
Os resultados alcançados apontam que a residência de D.
Maria Senhorinha, por ter funcionado como uma estalagem situada no caminho
entre os longínquos horizontes de uma área rural e a capital do estado, Natal,
acabou por fazer parte do roteiro dos que ali passavam, logrando reconhecimento
e se tornando em um local apropriado às amizades, conversação, amabilidades, ou
seja, um espaço receptivo à sociabilidade. Dessa forma, tirando proveito desse
tráfego, inclusive negociando a troca de impressos, essa mulher se tornou em
uma intercessora da cultura letrada e há até indícios de que praticara os
ensinamentos aprendidos no manual Bom Tom,
portando-se com modos corteses e civilizados no seu hospedar.
Em síntese, a partir desse estudo, foi possível
consubstanciar a significativa importância da cultura da hospitalidade para as
sociedades tradicionais. Para o povo norte-rio-grandense, principalmente no que
concerne ao seridoense, a acolhida afetuosa, os bons gestos de recepção, o
pernoite bem acomodado e seguro, o entretenimento, as iguarias, a existência de
um lugar destinado à oração, tudo isso culminou favorecendo para que as estalagens
assumissem o papel de ambientes habitados pela troca de favores e valores.
Aliás, foi desse modo que D. Maria Senhorinha, em sua casa grande, ganhou
notoriedade. Sua morte, em 1927, mereceu registro em jornal.
1. Estradas carroçáveis abrindo caminhos para
uma circularidade cultural
No plano de uma escrita tida como regionalista, além de
autores que se dedicaram a uma história preponderantemente autobiográfica,
recaindo na complicada postura de cindir criatura e criação, também é possível
encontrar escritores que conseguiram, de forma real e equilibrada, pôr em
letras a vida do povo do Seridó.
Desse modo, o caso de certos norte-rio-grandenses que
souberam se envolver com a escrita da cultura seridoense de uma época parece
até se constituir em um legado, em um patrimônio moral. Imbuídos e reconhecidos
como legítimos tradutores dessa cultura, esses sujeitos se revelaram hábeis na
função de infundir uma imagem de mundo rural, mundo esse que teceram
cuidadosamente como algo precioso. Através de seus registros, convidam-nos a
adentrar nessa trama, cuja urdidura é composta de um amálgama que inspira
unidade e configura sentido próprio a esse estilo de vida. Confortados nessa
tarefa e plenamente à vontade, esses escritores quase afirmam que a literatura
clássica, por não estar habilitada nesse ofício, não sabe encontrar palavras
para a cultura que dizem tanto cuidar. Por esse motivo, arvoram-se na condição
de especialistas nessa arte, considerando tal literatura incapaz de converter
em palavras o que primeiro deve ser captado em sentimento. Praticamente
dão a entender que os feitores de vocábulos por se apegarem a expressões
generalistas, estenderem conceitos e ficarem presos à semântica das palavras,
tornando comum o que é singular, dissolvem preciosas particularidades, e,
conseqüentemente, não são os mais indicados para dissertarem sobre uma cultura
que não sentem.
Para melhor
compreender o trajeto de viajantes, comboieiros, pedestres e tropeiros entre
Currais Novos e Natal, da segunda metade dos anos de 1800 até 1927, percurso
esse onde a casa de D. Maria Senhorinha tornou-se ponto de passagem, é
necessária, pois, uma apresentação de importantes aspectos presentes nas obras
desses norte-rio-grandenses.
Partindo desse viés, as revelações passam a ser surpreendentes.
Aliás, por intermédio delas, é descortinado um modo de vida que, embora de
natureza pacata, escapa à mesmice, ao previsível, mostrando-se notável.
Verifica-se, portanto, que existem certas singularidades para cada época e
lugar ou para cada momento diverso no tempo e no espaço. Assim, entre uma
leitura e outra, torna-se perceptível uma realidade peculiar, a realidade do
seridoense que pôde presenciar, em seu cotidiano, as singularidades de algumas
espécies de animais como cavalo, boi, burro mulo. Estas, todavia, se citadas a
critério de ilustrar a diversidade de bichos desse porte, próprios da região,
somente se tornam relevantes quando comprovam os diferentes usos que o Seridó
tinha por costume em relação a esses animais.
Segundo Alves (1985), o carro de boi era empregado para
trajetos curtos, realizando apenas o transporte de mercadorias entre fazendas
próximas ou entre os pequenos vilarejos que surgiam. No que diz respeito aos
cavalos, tem-se conhecimento de que podiam, embora não regularmente, ser usados
para grandes percursos, visto que foi através deles que os sesmeiros povoaram
os sertões. Quanto às tropas de burros mulos, utilizadas frequëntemente para
distâncias maiores, sabe-se que eram organizadas e açoitadas para andarem atrás
umas das outras, sendo diferentes das tropas de cavalos, que eram tangidas em
manadas.
O deslocar-se no Seridó, sob a cadência dos passos desses
animais, podia ser entre fazendas, entre cidades ou vilarejos próximos, entre
regiões diferentes ou ainda entre o lugar de morada até à capital do estado,
Natal.
Essas penosas e, muitas vezes, demoradas jornadas sob sol
causticante, pelas brenhas, rochedos, enfrentando matagais, safando-se em
pequenas aberturas chamadas de estradas carroçáveis, fizeram com que alguns
indivíduos se aventurassem de um lugar a outro, movidos pelas necessidades de
troca, mercado, sobrevivência.
Nelas, a posição social desses indivíduos se mostrava
profundamente díspar. Os interesses eram divergentes, uma vez que cada qual
estava preso às suas funções bem diferenciadas e delimitadas, contudo a saga
era a mesma: desbravar-se, desvencilhar-se.
Para o fazendeiro, valia o esforço para fazer dinheiro,
negociar, ver sua mercadoria dar preço. Para o matuto, esse era um meio de
vida, um ofício, o momento em que exibia sua experiência para aboiar tropas de
animais. A propósito, sobre esta personagem, é relevante que se faça um sucinto
esclarecimento.
De acordo com o que pôde ser extraído das obras dos
escritores aqui tomados como referência, foi possível depreender que a
literatura corrente ainda não consegue dar uma real definição do matuto e,
quando tenta, procede de modo simplificado e preconceituoso. Por essa
literatura, o papel social deste parece ser contextualizado apenas na ação do
tanger, na rudeza, na modéstia, na condição de pobre, parco, ingênuo. Todavia,
é importante que esse sujeito também seja visto como uma pessoa que se inseriu
no mundo do comércio, dos serviços, alguém que deu sua contribuição para os
liames da arte da comunicação, que abriu caminhos, um desbravador.
Portanto, a partir desse último argumento, considerando o ir e vir do matuto e
daqueles que, junto com ele, colaboraram na circulação de produtos e idéias,
torna-se patente dizer que as viagens outrora empreendidas, além de terem
apresentado áreas circunvizinhas como destino, também possuíram outros
roteiros, ora servindo-se da mais rústica das pontes entre uma região e outra,
ora vencendo as estradas entre o interior e o litoral.
Movidos por múltiplas forças, econômicas, sociais ou
culturais, esses deslocamentos interromperam, sorrateiramente, o isolamento do
mais recôndito dos interiores, induzindo-o a comercializar, realizar a troca,
entrar em contato, comunicar-se.
Situada nas imediações do alto onde finda a Serra do
Doutor, a estalagem do sítio São Luiz tem os prenúncios de sua história
marcados pela origem da Família Dantas Pegado Cortez, cujo patriarca tinha por
nome Manuel Pegado Cortez. Vindo de Natal, esse homem, quando chegou ao Seridó,
uniu-se a outros empreendedores e comprou uma data de terra, a Pitombeira, nos
arredores da Vila de Currais Novos. Desse negócio, a parte que lhe coube
recebeu a denominação de sítio São Luiz. Depois, passado algum tempo, procurando
estabilizar-se nessa região, em 1866, casou com D. Maria Senhorinha Dantas, que
após o casamento passou a se chamar Maria Senhorinha Dantas Pegado Cortez,
ficando popularmente conhecida, anos mais tarde, com sua viuvez, como D. Marica
Pegado.
Todos
esses fatos propiciaram o surgimento da casa grande desses dois seridoenses.
Esta, embora tenha começado a funcionar como estalagem pouco depois de meados
do século XIX, angariou maior freqüência nessa prática cultural durante o
período da viuvez de D. Maria Senhorinha, já nos anos de 1890 a 1927. Nessas tantas
décadas, em sua casa grande de construção imponente, em estilo colonial, com
suas grossas paredes e suas várias e alinhadas janelas, quase parecendo uma
fortaleza, muitas histórias foram contadas, cenas diversas foram vividas nos
corredores de um lugar próprio à recepção de pessoas, produtos e impressos.
Sobre
casas grandes tais como a de São Luiz, alguns autores até descrevem
determinadas características como se vê em “[...] cômodos espaçosos porque o
maior espaço é de ontem e também para que as redes não ficassem entipoiadas.”
(FARIA, 2006, p.23).
Na
estalagem da senhora Pegado, é comprovado esse aspecto do “maior espaço”, uma
vez que hóspedes, constantemente, por lá passavam. Conforme o que foi
pesquisado nesse estudo, partindo do que dizem as obras regionalistas, é
possível dizer que, nessa residência, havia um grande galpão que servia de
guarida para os tropeiros. As autoridades e fazendeiros dormiam na sala, que
também era extensa. A propósito, as melhores redes eram reservadas a esses
sujeitos.
Essa particularidade, na
verdade, traduz uma certa ritualidade envolvendo a prática cultural do
hospedar, cuja preocupação é o bem estar dos acolhidos, principalmente quando
estes condizem a pessoas ilustres. Nesse contexto, o vocábulo hóspede, derivado
da palavra hostes que,
primitivamente, significava inimigo, adquire também a conotação de pessoa que
está sob os cuidados de outra, em uma proteção sagrada do lar. Aliás, é aí que
figura a idéia de hospitalidade, assunto que, nos dias de hoje, vem sendo
largamente discutido, embora seja algo que remonte às civilizações antigas.
Sobre suas origens, pode-se afirmar que:
Não há dúvidas de que o conhecimento das
raízes históricas da hospitalidade pode contribuir para compreender como os
costumes das diferentes épocas fundamentavam a cultura social local. Vale
assinalar que a palavra hospitalidade tal como ela é usada hoje teria aparecido
pela primeira vez na Europa, provavelmente no início do século XIII, calcada na
palavra latina hospitalitas, ela
mesma derivada de hospitalis. Ela
designava a hospedagem gratuita e a atitude caridosa oferecida aos indigentes e
dos viajantes acolhidos nos conventos, hospícios e hospitais. (GRINOVER, 2002,
p.26-27)
Assim, a hospitalidade ora tratada não é aquela do consenso
geral, definida como mero negócio, mas sim a que supera esses estreitos
limites, buscando suas bases na relação entre anfitriões e hóspedes de outrora.
Essa relação, por sua vez, envolve uma troca de favores. O
anfitrião eleva seu prestígio social ao passo que o hóspede usufrui os deleites
de uma boa acolhida.
Sob os fundamentos da dádiva, essa acolhida se constitui em
um processo múltiplo que envolve as ações de dar, receber e retribuir. Nesse
processo, o dono da casa oferece cordialidade. Como resposta, o hóspede a
recebe e, de alguma forma, nas entrelinhas dessa complexa associação, ele
adquire uma obrigação de retribuir o favor ou o regalo dado.
Entre indivíduos, tudo isso parece se assemelhar a um pacto
religioso. Nesse sentido, dá para se observar que:
[...] há uma série de direitos e deveres
de consumir e de retribuir, correspondendo a direitos e deveres de dar e de
receber. Mas essa mistura íntima de direitos e deveres simétricos e contrários
deixa de parecer contraditória se pensarmos que há, antes de tudo, mistura de
vínculos espirituais entre as coisas, que de certo modo são alma, e os
indivíduos e grupos que se tratam de certo modo como coisas. E todas essas
instituições exprimem unicamente apenas um fato, um regime social, uma
mentalidade definida: é que tudo, alimentos, mulheres, filhos, bens, talismãs,
solo, trabalho, serviços, ofícios sacerdotais e funções, é matéria de
transmissão e de prestação de contas. Tudo isso vai e vem como se houvesse
troca constante de uma matéria espiritual que compreendesse coisas e homens,
entre os clãs e os indivíduos, repartidos entre as funções, os sexos, as
gerações. (MAUSS, 2003, p.202-203).
Mas, além de uma troca de favores, a hospitalidade
implementa uma troca de valores entre visitados e visitantes, fortalecendo o
relacionamento humano entre esses, criando uma ponte de conhecimentos, fundindo
visões de mundo. Em suma, além de artefatos próprios de uma boa estadia, tais
como a acomodação, o conforto, as iguarias, é preciso também um compromisso de
reciprocidade e de conhecimento repartido.
Na sociedade
seridoense, bem como em tantas outras, a casa chegou a se configurar em um
local receptivo à cultura da hospitalidade, a essa troca de favores e valores.
Por esse motivo, é até viável dizer que “nas fazendas, os viajantes eram sempre
bem acolhidos e tratados com toda lhanesa. Para eles eram melhoradas as
refeições, armada a rede mais alva e de melhor dormida [...]” (FARIA, 2006,
p.51-52).
Na casa grande de D.
Senhorinha, um exemplo vivo dessa cultura foi revelado. No caminho da capital,
ponto adequado ao tráfego de pessoas, fossem elas matutos, fazendeiros,
pedestres e tantos outros, esse lugar se destacou, alcançou status.
Naqueles tempos, talvez o fato de não existirem hotéis e
pensões para acomodar os viajantes, nas vilas e cidades do interior, associado
à demora ocorrida para melhorar a estrada, de carroçável à rodagem, tenha
contribuído para que essa casa assim se sobressaísse.
Contudo, vale ressaltar que D. Senhorinha, mesmo contando
com o auxílio dessas circunstâncias, para aquela época, era uma renomada
proprietária, esposa e depois viúva de um ilustre patriarca. Também filha de um
grande fazendeiro, homem de destaque. Tudo isso, por si só, já reunia
qualidades suficientes para que ela adaptasse o seu lar à forma de uma
estalagem, uma vez que isto significava reconhecimento e prestígio social.
Portanto, no contexto em que sua casa foi inserida, essa
mulher acabou por assumir vários papéis: mãe, amiga, cúmplice ou apenas dona do
estabelecimento. Porém, independente do papel, uma boa acolhida era sempre
garantida. O livro Bom Tom,
trazido e deixado como regalo por um de seus tantos hóspedes, é, na verdade,
uma prova do compromisso de reciprocidade entre visitante e visitado.
3. O
Código do Bom Tom e as regras de civilidade nos contornos de um ambiente
rural
Dentre os
livros que chegaram ao Seridó, nos anos de 1800, consta um exemplar do Código do Bom Tom ou Regras de Civilidade e
de Bem Viver no XIXº Século. Tal código, de
autoria do padre português José Inácio Roquette, trata-se de um guia didático
com regras de cortesia e de bom comportamento social. Em suas páginas, estão
compreendidos os preceitos e ensinamentos da civilidade.
Essa civilidade, todavia, não é aquela exclusivamente
associada ao ideal do civismo ufanista, já tão bem conhecida pela
contemporaneidade. Suas origens estão em outro momento da história, lá na
França do século XIX. Nessa época,
“[...] abandonando a ambição ética e
cívica dos anos revolucionários, a civilidade é entendida doravante como o
código das boas maneiras necessárias na sociedade, como a nomenclatura dos usos
da boa companhia. É fixada assim para todo século, a identificação da
civilidade com a conveniência burguesa”. (CHARTIER, 2004, p.88-89)
Civilidade
segundo o manual de Roquette, que, diga-se de passagem, viveu alguns anos em
Paris durante esse período, significa, então, saber o que convém fazer ou não
fazer em sociedade de acordo com um modelo de conduta preestabelecido.
Analisando
todo esse conceito inicial, parece até discrepante imaginar o Bom Tom em um
ambiente rústico, com valores tão distintos dos grandes centros como Paris.
Entretanto, apesar de toda a diferença de espaço e costumes, o fato é que os
impressos, assim como as idéias, circulam.
Há uma rede de
fatores complexos, mas relevantes, que propiciam a circulação desses impressos,
permitindo que eles ultrapassem as mais diversas fronteiras, chegando, por
vezes, aos mais inusitados lugares.
O caso de Menocchio,
personagem da obra de Ginzburg (1987), em O Queijo e os vermes, elucida e patenteia essa
afirmação. Morando em uma pequena aldeia italiana chamada Montereale e até
mesmo sendo autodidata, esse homem conseguiu ter acesso a uma variedade de
livros.
Vale salientar
que a chegada do Bom Tom à casa de D.
Maria Senhorinha se assemelha um pouco ao caso de Menocchio, uma vez que também
envolve todo esse processo do lugar inusitado.
Mas, de
qualquer forma, o que importa é que, tal qual aconteceu em Montereale com
outros livros, na estalagem do Sítio São Luiz, esse impresso ganhou
significado, leitura, vida. Existe até registro de que a civilidade preconizada
em suas páginas foi bem interpretada e aplicada pela matriarca da família
Dantas Pegado Cortez, D. Marica Pegado. Na vez em que o Bispo Diocesano de Natal,
D. Adauto, acompanhado do Vigário da Freguesia de Currais Novos e de outros
cavalheiros, foi servido da hospitalidade de sua casa para um pernoite, a
primeira página do jornal A República, editado em Natal,
registrou que a comitiva ficara satisfeitíssima com as maneiras lhanas dessa senhora.
4. Dona Maria Senhorinha: a senhora de maneiras lhanas e personalidade singular
Nas versões ofertadas pela história oral, a figura de Dona
Maria Senhorinha ressurge com toda a força que os artefatos desse tipo de
memória comportam. Nessas versões, a capacidade dos narradores para recriar uma
imagem dessa personagem se revela livre e criativa, apresentando-se
desvencilhada do tempo e fora do alcance de quem ouse intimidá-la dizendo, por
acaso, ser testemunha dos fatos.
Essa é a forma como os acontecimentos são recompostos pela
oralidade, como se houvessem ocorrido recentemente, relatados ao sabor dos
sentimentos. Assim também Dona Senhorinha é lembrada, em sua origem indígena,
como uma das últimas remanescentes de uma tribo que habitara o Seridó
norte-rio-grandense, os cariris. Em todas as imagens dela construídas, nem
mesmo detalhes de sua trajetória e traços de sua personalidade são
negligenciados. De sua vida, até se ensaia um pequeno romance, bem ao gosto da
cultura ocidental hegemônica, cuja expectativa era para que se “expurgasse o
universo de pensamento e os saberes dos indígenas” (MACÊDO, 2005, p.144).
Primeiro, uma índia braba, arredia, que ora fugindo da tribo, ora tendo sido
roubada, fora morar sozinha na cidade, desgarrada do seu clã. Depois, uma
mulher dotada de predicados morais, habilidades domésticas e adaptada ao modo
de vida urbana “civilizada”, que fora tomada em casamento por um senhor muito importante
e rico, deixando, dessa união, muitos descendentes. Nesse ponto, atinge-se um
clímax e coroa-se o desfecho dessa narrativa com um final feliz. Aqui, as
fórmulas dos contos de fadas, lendas, estórias de trancoso se fazem presentes e se mostram misturadas a
acontecimentos reais e históricos, retrabalhados pela fantasia, subestimando
época e lugar.
Essa é uma das facetas típicas da oralidade,
recompor acontecimentos remotos, perdidos no tempo, atualizando-os, tornando-os
contemporâneos, transformando-os em coisa de momento, recriando-os, mantendo-os
vivos. É como se ocorresse “uma dilatação no tempo pela proliferação de uma
história em outra” (CALVINO, 1990, p.
51).
Como uma
dessas facetas, além da história romanciada de D. Senhorinha, uma outra história,
que na verdade é um capítulo que compõe os prenúncios da primeira, permanece
viva na memória oral popular e é tida como atual. Trata-se da miscigenação de uma indígena com um dos primeiros colonizadores
portugueses, Manuel Vaz Varejão, o qual contribuiu para povoar a região do
Seridó. Esses, que eram os tetravôs de D. Marica, provavelmente por terem
constituído uma união entre membros de famílias diferentes, infringiram
tradições. Tradições essas que, em um
momento posterior, foram mantidas pelo restante da família, mas que vieram a
ser novamente quebradas por Senhorinha, em seu casamento com um forasteiro.
Além de quebradas, foram depois superadas, quando a mesma enviuvou e soube
conduzir o lar, os negócios e ainda se destacar perante a sociedade.
É, portanto,
sob esse contexto de personalidade ímpar, a qual transpassa o comum e se une ao
singular, que essa mulher deve ser vista. Numa sociedade rural em que os
principais papéis políticos e sociais eram destinados aos homens, na sua
condição de patriarcas, ela ainda assim alcançou notoriedade. Aliás, é a partir
desse pequeno esboço do trajeto de sua singularidade que ela veio a ser
sinônimo de uma pluralidade de personagens: matriarca, esposa, viúva,
preconizadora dos bons modos e anfitriã.
Considerações finais
Numa caligrafia com traços bem pessoais, dispensando regras
e modelos e fazendo uso de instrumentos primitivos de escrita, há um registro
na primeira página de um exemplar do Código
do Bom Tom ou Regras de Civilidade e de Bem Viver no XIXº Século atestando
que o mesmo chegara ao sítio São Luiz num sábado, às dez horas da manhã do dia
1º de janeiro de 1870. O autor desse registro é o proprietário dessa fazenda
que acolhera a obra, o Sr. Manuel Pegado Cortez. Segundo os costumes locais e
época, na condição de chefe, patriarca, haveria de ser ele a ter o direito de
imprimir o seu nome no novo bem adquirido para assim, além de aumentar o
patrimônio da família, reafirmar sua condição de bom provedor e comandante da
mesma. Serviria esse manual de “civilidade” e de costumes citadinos para ajudar
sua mulher, Dona Maria Senhorinha, na educação dos seus filhos que, ao todo,
foram quinze.
Considerando o ambiente profundamente rural no qual estavam
localizadas as terras da Data da Pitombeira, no início desdobrada em três
fazendas, é provável que o sítio São Luiz, ao obter a nova aquisição, tenha
dessas outras duas se destacado. Possuir materiais impressos, louças, talheres,
obras de arte, relógios e alguns outros acessórios mais, conferia status a esses lugares. Esses objetos
eram vistos como raros, cobiçados, sofisticados, produtos inimagináveis de
serem adquiridos nos centros urbanos da região do Seridó. A disputa pela
herança de bens como esses, categoria em que se inserem os livros, leva a
compreender como o exemplar Código do Bom
Tom pertencente à família Dantas Pegado Cortez fora disputado entre seus
membros. É até curioso observar que, tal como procedera o pai, três dos filhos,
por ordem decrescente, Manuel Junior, Guilhermina e Maria Camila, lançaram-se proprietários
do mesmo. Entretanto, o que aconteceu foi que esse acabou por recair à posse da
mãe, D. Maria Senhorinha, pelo papel que esta desempenhou, pelo seu mérito da
adequada assimilação dos ensinamentos de civilidade nele contidos.
Nesse ponto, o presente trabalho não se negou a uma justa
homenagem aos historiadores norte-rio-grandenses, os quais não se intimidaram
em afirmar que, nos longínquos sertões nordestinos, em remotas épocas, famílias
acrescentaram ao seu patrimônio exemplares de livros que se editavam na Europa.
No caso das práticas culturais que estiveram em uso no
Sítio São Luiz, demarcadas pela presença do Código
do Bom Tom, o que se pode afirmar é que serviram para projetar Dona Maria
Senhorinha, a qual pelos tantos atributos pessoais, conseguiu angariar respeito
e demarcar com elevada distinção sua personalidade, sua capacidade de
administrar.
Não é por outro motivo que no Edital expedido por João
Alfredo de Albuquerque Galvão, Presidente do Governo Municipal de Currais
Novos, quando das eleições para Presidente e Vice Presidente da Republica,
marcadas para o dia 1º de Março do ano de 1899, consta que das três secções
para votação em que seria dividido o Município, duas funcionariam no Paço do
Governo Municipal e a outra no edifício de D. Maria Senhorinha Dantas Pegado
Cortez, na Rua do Rosário da então vila de Currais Novos. Nesta casa não
residia Dona Senhorinha, mas um de seus filhos. Servia-lhe sim de apoio, quando
precisava permanecer no centro da vila. Mesmo assim, na hora da medida oficial
pesou a estatura moral da moradora transitória.
Este estudo também reconhece que foi daquele ir e vir pelas
estradas carroçáveis de outrora, dos meados do império ao início do período
republicano, por meio do percurso de tropeiros, comboieiros, viajantes e
pedestres, que o distrito de Currais Novos, em termos de movimentação, pôde
romper barreiras.
Especialmente no sítio São
Luiz, a casa de Dona Maria Senhorinha, local de estalagem, tal como os velhos
castelos medievais isolados nas provinces
francesas, com seus costumes particulares, serviu de ponto de ancoragem, desempenhando um papel aglutinador
de sujeitos e culturas, da troca de valores e favores. É por tudo isso que parece ser uma regra
livros, culturas, impressos circularem e aportarem em casas de pessoas
sensíveis, que sabem atribuir novas significações ao que ousam experimentar.
Portanto, o que se pode concluir é que o livro Bom Tom tenha sido talvez uma grande
testemunha da prática cultural que inovara costumes no sertão seridoense, mesmo
permanecendo forte a tradição do contar histórias, da oralidade, principalmente
na hora da debulha do feijão que durava horas a fio, quando se davam as
condições latentes para se renovar o universo da cultura agrária, a qual,
certamente, também existia na casa de D. Maria Senhorinha. Entretanto, para
esta senhora, talvez, o convívio com uma cultura letrada, tenha sido uma forma
dela se reencontrar com sua formação de origens. A propósito, da forma como a
praticou, denota-se até que soube atentar para os novos tempos, para uma
modernidade contida na circularidade de impressos.
Referências
ALVES, Celestino. Retoques da História de Currais Novos.
Natal: Fundação José Augusto, 1985.
__________ . Matutos e Tropeiros. Brasília/DF: Gráfica do Senado, 1989.
BARRETO, Margarita. Manual de Iniciação ao Estudo do Turismo. São
Paulo: Papirus, 2006.
CALVINO, Ítalo. Seis
propostas para o próximo milênio: lições americanas.
São Paulo: Companhia das letras, 1990.
CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na França do Antigo
Regime. São Paulo: Editora UNESP, 2004.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as
idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das
letras, 1987.
GRINOVER, Lúcio. Hospitalidade:
um tema a ser reestudado e pesquisado. In: DIAS, Célia Maria de Morais (org.). Hospitalidade: Reflexões e Perspectivas. Barueri/SP: Manole, 2002. p. 25-38
LAMARTINE, Juvenal. Velhos costumes do meu sertão. Natal:
Sebo Vermelho, 2006.
MACEDO,
Helder Alexandre M. de. Quem foi que disse que no Seridó não tinha índios?
Histórias indígenas no Seridó após as guerras dos bárbaros. In: DANTAS, Maria
Eugênia; BURITI, Iranilson (Org.). Cidade
e Região. Múltiplas histórias. João Pessoa: Idéia, 2005. p.137-174
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo:
COSACNAIY, 2003.
MEDEIROS FILHO, Pe. João; FARIA,
Oswaldo Lamartine. Seridó – Séc.XIX:
fazendas e livros. Rio de Janeiro: Marques Saraiva, 2001.
MEDEIROS, José Augusto. Seridó. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954.
MELO, Manoel Rodrigues de. Patriarcas e Carreiros: influência do
coronel e do carro de boi na sociedade rural do Nordeste. Natal: Ed.
Universitária, 1985.
MORAIS,
Ione Rodrigues Diniz. Seridó
Norte-Rio-Grandense: uma geografia da resistência. Caicó/RN: Ed. do Autor,
2005.
QUINTINO FILHO, Antônio. História de Currais Novos. Natal:
Fundação José Augusto, 1987.
SOUZA, Francineide Ferreira de
Azevedo; MEDEIROS, Maria da Guia de. Coisas
do Seridó. Currais Novos/RN: Tipografia Pe. Ausônio, 2008.
VEYNE, Paul. O inventário das diferenças. História e Sociologia. São Paulo:
Brasiliense, 1976.
[1]
Professora Doutora do Departamento de Ciências Sociais e Humanas (Campus de
Currais Novos) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Coordenadora da
Base de Pesquisa: Cultura e Educação no Seridó Norte-Rio-Grandense.
[2] Cf. MORAIS, 2005. Nessa referência, a autora trabalha um
conceito que vai além da simples descrição dos aspectos físicos e geográficos
da região. Nesse sentido, torna-se possível confirmar a idéia de que o Seridó,
hoje formado por 23 Municípios, teve uma regionalização historicamente
constituída, marcada pelo desmembramento do Município de Caicó.
Nenhum comentário:
Postar um comentário