quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Marica Pegado,uma mulher culta e informada.


ESTALAGEM DE PESSOAS E IMPRESSOS: SÍTIO SÃO LUIZ, CASA DE DONA MARIA SENHORINHA (VILA DE CURRAIS NOVOS/RN - 1870)

Eva Cristini Arruda Câmara Barros/Universidade Federal do Rio Grande do Norte[1]

Eixo temático 1 - Circulação de idéias, discursos e modelos educativos

Introdução

As idéias circulam, por sua vez, também os impressos. Foi seguindo essa trajetória contínua de uma circularidade cultural, de um ir e vir sucessivo de valores e preceitos que, em 1870, um exemplar do livro Código do Bom Tom ou Regras de Civilidade e de Bem Viver no XIXº Século, escrito pelo padre português José Inácio Roquette, chegou à casa de D. Maria Senhorinha, no sítio São Luiz, localizado nos arredores da Vila de Currais Novos, em uma região do estado do Rio Grande do Norte conhecida como Seridó[2].
Pode-se dizer que a presença de um impresso como o Bom Tom, meio difusor de uma cultura escrita, em uma sociedade essencialmente rústica, agrária e patriarcal, a qual fundava grande parte de seus ensinamentos sob os traços da oralidade, é um fato que instiga curiosidade. Por esse motivo, a presente pesquisa busca compreender como um manual preconizador de cortesia, bons modos e civilidade, que traduzia um estilo de vida europeu do século XIX, veio povoar o cotidiano e o lar de uma seridoense, D. Maria Senhorinha, constituindo-se, anos depois, em um dos bens legados à sua família, a família Dantas Pegado Cortez.
Para conseguir alcançar tal objetivo, foram abordados referenciais teóricos que versam sobre hospitalidade, entendida como uma troca de favores e valores entre seres humanos em tempos e espaços planejados; sobre impresso, concebido como algo constitutivo de sentido e anunciador de uma classificação e distribuição de discursos; bem como sobre representações, definidas como práticas culturais que apreendem e organizam o real.
Por conseguinte, para ampliar e patentear a leitura desses referenciais, foram utilizados algumas publicações regionalistas acerca do Seridó antigo e uma descrição contendo o percurso de viajantes, comboieiros, pedestres e tropeiros, feito por meio de estradas carroçáveis, entre Currais Novos e Natal, da segunda metade dos anos de 1800 até 1927.
Os resultados alcançados apontam que a residência de D. Maria Senhorinha, por ter funcionado como uma estalagem situada no caminho entre os longínquos horizontes de uma área rural e a capital do estado, Natal, acabou por fazer parte do roteiro dos que ali passavam, logrando reconhecimento e se tornando em um local apropriado às amizades, conversação, amabilidades, ou seja, um espaço receptivo à sociabilidade. Dessa forma, tirando proveito desse tráfego, inclusive negociando a troca de impressos, essa mulher se tornou em uma intercessora da cultura letrada e há até indícios de que praticara os ensinamentos aprendidos no manual Bom Tom, portando-se com modos corteses e civilizados no seu hospedar.
Em síntese, a partir desse estudo, foi possível consubstanciar a significativa importância da cultura da hospitalidade para as sociedades tradicionais. Para o povo norte-rio-grandense, principalmente no que concerne ao seridoense, a acolhida afetuosa, os bons gestos de recepção, o pernoite bem acomodado e seguro, o entretenimento, as iguarias, a existência de um lugar destinado à oração, tudo isso culminou favorecendo para que as estalagens assumissem o papel de ambientes habitados pela troca de favores e valores. Aliás, foi desse modo que D. Maria Senhorinha, em sua casa grande, ganhou notoriedade. Sua morte, em 1927, mereceu registro em jornal.

1. Estradas carroçáveis abrindo caminhos para uma circularidade cultural

No plano de uma escrita tida como regionalista, além de autores que se dedicaram a uma história preponderantemente autobiográfica, recaindo na complicada postura de cindir criatura e criação, também é possível encontrar escritores que conseguiram, de forma real e equilibrada, pôr em letras a vida do povo do Seridó.
Desse modo, o caso de certos norte-rio-grandenses que souberam se envolver com a escrita da cultura seridoense de uma época parece até se constituir em um legado, em um patrimônio moral. Imbuídos e reconhecidos como legítimos tradutores dessa cultura, esses sujeitos se revelaram hábeis na função de infundir uma imagem de mundo rural, mundo esse que teceram cuidadosamente como algo precioso. Através de seus registros, convidam-nos a adentrar nessa trama, cuja urdidura é composta de um amálgama que inspira unidade e configura sentido próprio a esse estilo de vida. Confortados nessa tarefa e plenamente à vontade, esses escritores quase afirmam que a literatura clássica, por não estar habilitada nesse ofício, não sabe encontrar palavras para a cultura que dizem tanto cuidar. Por esse motivo, arvoram-se na condição de especialistas nessa arte, considerando tal literatura incapaz de converter em palavras o que primeiro deve ser captado em sentimento. Praticamente dão a entender que os feitores de vocábulos por se apegarem a expressões generalistas, estenderem conceitos e ficarem presos à semântica das palavras, tornando comum o que é singular, dissolvem preciosas particularidades, e, conseqüentemente, não são os mais indicados para dissertarem sobre uma cultura que não sentem.
 Para melhor compreender o trajeto de viajantes, comboieiros, pedestres e tropeiros entre Currais Novos e Natal, da segunda metade dos anos de 1800 até 1927, percurso esse onde a casa de D. Maria Senhorinha tornou-se ponto de passagem, é necessária, pois, uma apresentação de importantes aspectos presentes nas obras desses norte-rio-grandenses.
Partindo desse viés, as revelações passam a ser surpreendentes. Aliás, por intermédio delas, é descortinado um modo de vida que, embora de natureza pacata, escapa à mesmice, ao previsível, mostrando-se notável. Verifica-se, portanto, que existem certas singularidades para cada época e lugar ou para cada momento diverso no tempo e no espaço. Assim, entre uma leitura e outra, torna-se perceptível uma realidade peculiar, a realidade do seridoense que pôde presenciar, em seu cotidiano, as singularidades de algumas espécies de animais como cavalo, boi, burro mulo. Estas, todavia, se citadas a critério de ilustrar a diversidade de bichos desse porte, próprios da região, somente se tornam relevantes quando comprovam os diferentes usos que o Seridó tinha por costume em relação a esses animais.
Segundo Alves (1985), o carro de boi era empregado para trajetos curtos, realizando apenas o transporte de mercadorias entre fazendas próximas ou entre os pequenos vilarejos que surgiam. No que diz respeito aos cavalos, tem-se conhecimento de que podiam, embora não regularmente, ser usados para grandes percursos, visto que foi através deles que os sesmeiros povoaram os sertões. Quanto às tropas de burros mulos, utilizadas frequëntemente para distâncias maiores, sabe-se que eram organizadas e açoitadas para andarem atrás umas das outras, sendo diferentes das tropas de cavalos, que eram tangidas em manadas.
O deslocar-se no Seridó, sob a cadência dos passos desses animais, podia ser entre fazendas, entre cidades ou vilarejos próximos, entre regiões diferentes ou ainda entre o lugar de morada até à capital do estado, Natal.
Essas penosas e, muitas vezes, demoradas jornadas sob sol causticante, pelas brenhas, rochedos, enfrentando matagais, safando-se em pequenas aberturas chamadas de estradas carroçáveis, fizeram com que alguns indivíduos se aventurassem de um lugar a outro, movidos pelas necessidades de troca, mercado, sobrevivência.
Nelas, a posição social desses indivíduos se mostrava profundamente díspar. Os interesses eram divergentes, uma vez que cada qual estava preso às suas funções bem diferenciadas e delimitadas, contudo a saga era a mesma: desbravar-se, desvencilhar-se.
Para o fazendeiro, valia o esforço para fazer dinheiro, negociar, ver sua mercadoria dar preço. Para o matuto, esse era um meio de vida, um ofício, o momento em que exibia sua experiência para aboiar tropas de animais. A propósito, sobre esta personagem, é relevante que se faça um sucinto esclarecimento.
De acordo com o que pôde ser extraído das obras dos escritores aqui tomados como referência, foi possível depreender que a literatura corrente ainda não consegue dar uma real definição do matuto e, quando tenta, procede de modo simplificado e preconceituoso. Por essa literatura, o papel social deste parece ser contextualizado apenas na ação do tanger, na rudeza, na modéstia, na condição de pobre, parco, ingênuo. Todavia, é importante que esse sujeito também seja visto como uma pessoa que se inseriu no mundo do comércio, dos serviços, alguém que deu sua contribuição para os liames da arte da comunicação, que abriu caminhos, um desbravador.
            Portanto, a partir desse último argumento, considerando o ir e vir do matuto e daqueles que, junto com ele, colaboraram na circulação de produtos e idéias, torna-se patente dizer que as viagens outrora empreendidas, além de terem apresentado áreas circunvizinhas como destino, também possuíram outros roteiros, ora servindo-se da mais rústica das pontes entre uma região e outra, ora vencendo as estradas entre o interior e o litoral.
Movidos por múltiplas forças, econômicas, sociais ou culturais, esses deslocamentos interromperam, sorrateiramente, o isolamento do mais recôndito dos interiores, induzindo-o a comercializar, realizar a troca, entrar em contato, comunicar-se.

2. A estalagem: lócus de abrigo e circularidade cultural

Situada nas imediações do alto onde finda a Serra do Doutor, a estalagem do sítio São Luiz tem os prenúncios de sua história marcados pela origem da Família Dantas Pegado Cortez, cujo patriarca tinha por nome Manuel Pegado Cortez. Vindo de Natal, esse homem, quando chegou ao Seridó, uniu-se a outros empreendedores e comprou uma data de terra, a Pitombeira, nos arredores da Vila de Currais Novos. Desse negócio, a parte que lhe coube recebeu a denominação de sítio São Luiz. Depois, passado algum tempo, procurando estabilizar-se nessa região, em 1866, casou com D. Maria Senhorinha Dantas, que após o casamento passou a se chamar Maria Senhorinha Dantas Pegado Cortez, ficando popularmente conhecida, anos mais tarde, com sua viuvez, como D. Marica Pegado.  
                  Todos esses fatos propiciaram o surgimento da casa grande desses dois seridoenses. Esta, embora tenha começado a funcionar como estalagem pouco depois de meados do século XIX, angariou maior freqüência nessa prática cultural durante o período da viuvez de D. Maria Senhorinha, já nos anos de 1890 a 1927. Nessas tantas décadas, em sua casa grande de construção imponente, em estilo colonial, com suas grossas paredes e suas várias e alinhadas janelas, quase parecendo uma fortaleza, muitas histórias foram contadas, cenas diversas foram vividas nos corredores de um lugar próprio à recepção de pessoas, produtos e impressos.
                  Sobre casas grandes tais como a de São Luiz, alguns autores até descrevem determinadas características como se vê em “[...] cômodos espaçosos porque o maior espaço é de ontem e também para que as redes não ficassem entipoiadas.” (FARIA, 2006, p.23).
                  Na estalagem da senhora Pegado, é comprovado esse aspecto do “maior espaço”, uma vez que hóspedes, constantemente, por lá passavam. Conforme o que foi pesquisado nesse estudo, partindo do que dizem as obras regionalistas, é possível dizer que, nessa residência, havia um grande galpão que servia de guarida para os tropeiros. As autoridades e fazendeiros dormiam na sala, que também era extensa. A propósito, as melhores redes eram reservadas a esses sujeitos.
                        Essa particularidade, na verdade, traduz uma certa ritualidade envolvendo a prática cultural do hospedar, cuja preocupação é o bem estar dos acolhidos, principalmente quando estes condizem a pessoas ilustres. Nesse contexto, o vocábulo hóspede, derivado da palavra hostes que, primitivamente, significava inimigo, adquire também a conotação de pessoa que está sob os cuidados de outra, em uma proteção sagrada do lar. Aliás, é aí que figura a idéia de hospitalidade, assunto que, nos dias de hoje, vem sendo largamente discutido, embora seja algo que remonte às civilizações antigas. Sobre suas origens, pode-se afirmar que:
                                                                      
Não há dúvidas de que o conhecimento das raízes históricas da hospitalidade pode contribuir para compreender como os costumes das diferentes épocas fundamentavam a cultura social local. Vale assinalar que a palavra hospitalidade tal como ela é usada hoje teria aparecido pela primeira vez na Europa, provavelmente no início do século XIII, calcada na palavra latina hospitalitas, ela mesma derivada de hospitalis. Ela designava a hospedagem gratuita e a atitude caridosa oferecida aos indigentes e dos viajantes acolhidos nos conventos, hospícios e hospitais. (GRINOVER, 2002, p.26-27)

Assim, a hospitalidade ora tratada não é aquela do consenso geral, definida como mero negócio, mas sim a que supera esses estreitos limites, buscando suas bases na relação entre anfitriões e hóspedes de outrora.
Essa relação, por sua vez, envolve uma troca de favores. O anfitrião eleva seu prestígio social ao passo que o hóspede usufrui os deleites de uma boa acolhida.
Sob os fundamentos da dádiva, essa acolhida se constitui em um processo múltiplo que envolve as ações de dar, receber e retribuir. Nesse processo, o dono da casa oferece cordialidade. Como resposta, o hóspede a recebe e, de alguma forma, nas entrelinhas dessa complexa associação, ele adquire uma obrigação de retribuir o favor ou o regalo dado.
Entre indivíduos, tudo isso parece se assemelhar a um pacto religioso. Nesse sentido, dá para se observar que:

[...] há uma série de direitos e deveres de consumir e de retribuir, correspondendo a direitos e deveres de dar e de receber. Mas essa mistura íntima de direitos e deveres simétricos e contrários deixa de parecer contraditória se pensarmos que há, antes de tudo, mistura de vínculos espirituais entre as coisas, que de certo modo são alma, e os indivíduos e grupos que se tratam de certo modo como coisas. E todas essas instituições exprimem unicamente apenas um fato, um regime social, uma mentalidade definida: é que tudo, alimentos, mulheres, filhos, bens, talismãs, solo, trabalho, serviços, ofícios sacerdotais e funções, é matéria de transmissão e de prestação de contas. Tudo isso vai e vem como se houvesse troca constante de uma matéria espiritual que compreendesse coisas e homens, entre os clãs e os indivíduos, repartidos entre as funções, os sexos, as gerações. (MAUSS, 2003, p.202-203).

Mas, além de uma troca de favores, a hospitalidade implementa uma troca de valores entre visitados e visitantes, fortalecendo o relacionamento humano entre esses, criando uma ponte de conhecimentos, fundindo visões de mundo. Em suma, além de artefatos próprios de uma boa estadia, tais como a acomodação, o conforto, as iguarias, é preciso também um compromisso de reciprocidade e de conhecimento repartido.
  Na sociedade seridoense, bem como em tantas outras, a casa chegou a se configurar em um local receptivo à cultura da hospitalidade, a essa troca de favores e valores. Por esse motivo, é até viável dizer que “nas fazendas, os viajantes eram sempre bem acolhidos e tratados com toda lhanesa. Para eles eram melhoradas as refeições, armada a rede mais alva e de melhor dormida [...]” (FARIA, 2006, p.51-52).
 Na casa grande de D. Senhorinha, um exemplo vivo dessa cultura foi revelado. No caminho da capital, ponto adequado ao tráfego de pessoas, fossem elas matutos, fazendeiros, pedestres e tantos outros, esse lugar se destacou, alcançou status.
Naqueles tempos, talvez o fato de não existirem hotéis e pensões para acomodar os viajantes, nas vilas e cidades do interior, associado à demora ocorrida para melhorar a estrada, de carroçável à rodagem, tenha contribuído para que essa casa assim se sobressaísse.
Contudo, vale ressaltar que D. Senhorinha, mesmo contando com o auxílio dessas circunstâncias, para aquela época, era uma renomada proprietária, esposa e depois viúva de um ilustre patriarca. Também filha de um grande fazendeiro, homem de destaque. Tudo isso, por si só, já reunia qualidades suficientes para que ela adaptasse o seu lar à forma de uma estalagem, uma vez que isto significava reconhecimento e prestígio social.
Portanto, no contexto em que sua casa foi inserida, essa mulher acabou por assumir vários papéis: mãe, amiga, cúmplice ou apenas dona do estabelecimento. Porém, independente do papel, uma boa acolhida era sempre garantida. O livro Bom Tom, trazido e deixado como regalo por um de seus tantos hóspedes, é, na verdade, uma prova do compromisso de reciprocidade entre visitante e visitado.

3. O Código do Bom Tom e as regras de civilidade nos contornos de um ambiente rural
           
Dentre os livros que chegaram ao Seridó, nos anos de 1800, consta um exemplar do Código do Bom Tom ou Regras de Civilidade e de Bem Viver no XIXº Século. Tal código, de autoria do padre português José Inácio Roquette, trata-se de um guia didático com regras de cortesia e de bom comportamento social. Em suas páginas, estão compreendidos os preceitos e ensinamentos da civilidade.
Essa civilidade, todavia, não é aquela exclusivamente associada ao ideal do civismo ufanista, já tão bem conhecida pela contemporaneidade. Suas origens estão em outro momento da história, lá na França do século XIX. Nessa época,

“[...] abandonando a ambição ética e cívica dos anos revolucionários, a civilidade é entendida doravante como o código das boas maneiras necessárias na sociedade, como a nomenclatura dos usos da boa companhia. É fixada assim para todo século, a identificação da civilidade com a conveniência burguesa”. (CHARTIER, 2004, p.88-89)

Civilidade segundo o manual de Roquette, que, diga-se de passagem, viveu alguns anos em Paris durante esse período, significa, então, saber o que convém fazer ou não fazer em sociedade de acordo com um modelo de conduta preestabelecido.
Analisando todo esse conceito inicial, parece até discrepante imaginar o Bom Tom em um ambiente rústico, com valores tão distintos dos grandes centros como Paris. Entretanto, apesar de toda a diferença de espaço e costumes, o fato é que os impressos, assim como as idéias, circulam.
Há uma rede de fatores complexos, mas relevantes, que propiciam a circulação desses impressos, permitindo que eles ultrapassem as mais diversas fronteiras, chegando, por vezes, aos mais inusitados lugares.
O caso de Menocchio, personagem da obra de Ginzburg (1987), em O Queijo e os vermes, elucida e patenteia essa afirmação. Morando em uma pequena aldeia italiana chamada Montereale e até mesmo sendo autodidata, esse homem conseguiu ter acesso a uma variedade de livros.
Vale salientar que a chegada do Bom Tom à casa de D. Maria Senhorinha se assemelha um pouco ao caso de Menocchio, uma vez que também envolve todo esse processo do lugar inusitado.
Mas, de qualquer forma, o que importa é que, tal qual aconteceu em Montereale com outros livros, na estalagem do Sítio São Luiz, esse impresso ganhou significado, leitura, vida. Existe até registro de que a civilidade preconizada em suas páginas foi bem interpretada e aplicada pela matriarca da família Dantas Pegado Cortez, D. Marica Pegado. Na vez em que o Bispo Diocesano de Natal, D. Adauto, acompanhado do Vigário da Freguesia de Currais Novos e de outros cavalheiros, foi servido da hospitalidade de sua casa para um pernoite, a primeira página do jornal A República, editado em Natal, registrou que a comitiva ficara satisfeitíssima com as maneiras lhanas dessa senhora.
                       
4. Dona Maria Senhorinha: a senhora de maneiras lhanas e personalidade singular

Nas versões ofertadas pela história oral, a figura de Dona Maria Senhorinha ressurge com toda a força que os artefatos desse tipo de memória comportam. Nessas versões, a capacidade dos narradores para recriar uma imagem dessa personagem se revela livre e criativa, apresentando-se desvencilhada do tempo e fora do alcance de quem ouse intimidá-la dizendo, por acaso, ser testemunha dos fatos.
Essa é a forma como os acontecimentos são recompostos pela oralidade, como se houvessem ocorrido recentemente, relatados ao sabor dos sentimentos. Assim também Dona Senhorinha é lembrada, em sua origem indígena, como uma das últimas remanescentes de uma tribo que habitara o Seridó norte-rio-grandense, os cariris. Em todas as imagens dela construídas, nem mesmo detalhes de sua trajetória e traços de sua personalidade são negligenciados. De sua vida, até se ensaia um pequeno romance, bem ao gosto da cultura ocidental hegemônica, cuja expectativa era para que se “expurgasse o universo de pensamento e os saberes dos indígenas” (MACÊDO, 2005, p.144). Primeiro, uma índia braba, arredia, que ora fugindo da tribo, ora tendo sido roubada, fora morar sozinha na cidade, desgarrada do seu clã. Depois, uma mulher dotada de predicados morais, habilidades domésticas e adaptada ao modo de vida urbana “civilizada”, que fora tomada em casamento por um senhor muito importante e rico, deixando, dessa união, muitos descendentes. Nesse ponto, atinge-se um clímax e coroa-se o desfecho dessa narrativa com um final feliz. Aqui, as fórmulas dos contos de fadas, lendas, estórias de trancoso se fazem presentes e se mostram misturadas a acontecimentos reais e históricos, retrabalhados pela fantasia, subestimando época e lugar.
Essa é uma das facetas típicas da oralidade, recompor acontecimentos remotos, perdidos no tempo, atualizando-os, tornando-os contemporâneos, transformando-os em coisa de momento, recriando-os, mantendo-os vivos. É como se ocorresse “uma dilatação no tempo pela proliferação de uma história em outra (CALVINO, 1990, p. 51).
Como uma dessas facetas, além da história romanciada de D. Senhorinha, uma outra história, que na verdade é um capítulo que compõe os prenúncios da primeira, permanece viva na memória oral popular e é tida como atual. Trata-se da miscigenação de uma indígena com um dos primeiros colonizadores portugueses, Manuel Vaz Varejão, o qual contribuiu para povoar a região do Seridó. Esses, que eram os tetravôs de D. Marica, provavelmente por terem constituído uma união entre membros de famílias diferentes, infringiram tradições.  Tradições essas que, em um momento posterior, foram mantidas pelo restante da família, mas que vieram a ser novamente quebradas por Senhorinha, em seu casamento com um forasteiro. Além de quebradas, foram depois superadas, quando a mesma enviuvou e soube conduzir o lar, os negócios e ainda se destacar perante a sociedade.
É, portanto, sob esse contexto de personalidade ímpar, a qual transpassa o comum e se une ao singular, que essa mulher deve ser vista. Numa sociedade rural em que os principais papéis políticos e sociais eram destinados aos homens, na sua condição de patriarcas, ela ainda assim alcançou notoriedade. Aliás, é a partir desse pequeno esboço do trajeto de sua singularidade que ela veio a ser sinônimo de uma pluralidade de personagens: matriarca, esposa, viúva, preconizadora dos bons modos e anfitriã.

Considerações finais

Numa caligrafia com traços bem pessoais, dispensando regras e modelos e fazendo uso de instrumentos primitivos de escrita, há um registro na primeira página de um exemplar do Código do Bom Tom ou Regras de Civilidade e de Bem Viver no XIXº Século atestando que o mesmo chegara ao sítio São Luiz num sábado, às dez horas da manhã do dia 1º de janeiro de 1870. O autor desse registro é o proprietário dessa fazenda que acolhera a obra, o Sr. Manuel Pegado Cortez. Segundo os costumes locais e época, na condição de chefe, patriarca, haveria de ser ele a ter o direito de imprimir o seu nome no novo bem adquirido para assim, além de aumentar o patrimônio da família, reafirmar sua condição de bom provedor e comandante da mesma. Serviria esse manual de “civilidade” e de costumes citadinos para ajudar sua mulher, Dona Maria Senhorinha, na educação dos seus filhos que, ao todo, foram quinze.
Considerando o ambiente profundamente rural no qual estavam localizadas as terras da Data da Pitombeira, no início desdobrada em três fazendas, é provável que o sítio São Luiz, ao obter a nova aquisição, tenha dessas outras duas se destacado. Possuir materiais impressos, louças, talheres, obras de arte, relógios e alguns outros acessórios mais, conferia status a esses lugares. Esses objetos eram vistos como raros, cobiçados, sofisticados, produtos inimagináveis de serem adquiridos nos centros urbanos da região do Seridó. A disputa pela herança de bens como esses, categoria em que se inserem os livros, leva a compreender como o exemplar Código do Bom Tom pertencente à família Dantas Pegado Cortez fora disputado entre seus membros. É até curioso observar que, tal como procedera o pai, três dos filhos, por ordem decrescente, Manuel Junior, Guilhermina e Maria Camila, lançaram-se proprietários do mesmo. Entretanto, o que aconteceu foi que esse acabou por recair à posse da mãe, D. Maria Senhorinha, pelo papel que esta desempenhou, pelo seu mérito da adequada assimilação dos ensinamentos de civilidade nele contidos.
Nesse ponto, o presente trabalho não se negou a uma justa homenagem aos historiadores norte-rio-grandenses, os quais não se intimidaram em afirmar que, nos longínquos sertões nordestinos, em remotas épocas, famílias acrescentaram ao seu patrimônio exemplares de livros que se editavam na Europa.
No caso das práticas culturais que estiveram em uso no Sítio São Luiz, demarcadas pela presença do Código do Bom Tom, o que se pode afirmar é que serviram para projetar Dona Maria Senhorinha, a qual pelos tantos atributos pessoais, conseguiu angariar respeito e demarcar com elevada distinção sua personalidade, sua capacidade de administrar.
Não é por outro motivo que no Edital expedido por João Alfredo de Albuquerque Galvão, Presidente do Governo Municipal de Currais Novos, quando das eleições para Presidente e Vice Presidente da Republica, marcadas para o dia 1º de Março do ano de 1899, consta que das três secções para votação em que seria dividido o Município, duas funcionariam no Paço do Governo Municipal e a outra no edifício de D. Maria Senhorinha Dantas Pegado Cortez, na Rua do Rosário da então vila de Currais Novos. Nesta casa não residia Dona Senhorinha, mas um de seus filhos. Servia-lhe sim de apoio, quando precisava permanecer no centro da vila. Mesmo assim, na hora da medida oficial pesou a estatura moral da moradora transitória.
Este estudo também reconhece que foi daquele ir e vir pelas estradas carroçáveis de outrora, dos meados do império ao início do período republicano, por meio do percurso de tropeiros, comboieiros, viajantes e pedestres, que o distrito de Currais Novos, em termos de movimentação, pôde romper barreiras.
Especialmente no sítio São Luiz, a casa de Dona Maria Senhorinha, local de estalagem, tal como os velhos castelos medievais isolados nas provinces francesas, com seus costumes particulares, serviu de ponto de ancoragem, desempenhando um papel aglutinador de sujeitos e culturas, da troca de valores e favores.  É por tudo isso que parece ser uma regra livros, culturas, impressos circularem e aportarem em casas de pessoas sensíveis, que sabem atribuir novas significações ao que ousam experimentar.
Portanto, o que se pode concluir é que o livro Bom Tom tenha sido talvez uma grande testemunha da prática cultural que inovara costumes no sertão seridoense, mesmo permanecendo forte a tradição do contar histórias, da oralidade, principalmente na hora da debulha do feijão que durava horas a fio, quando se davam as condições latentes para se renovar o universo da cultura agrária, a qual, certamente, também existia na casa de D. Maria Senhorinha. Entretanto, para esta senhora, talvez, o convívio com uma cultura letrada, tenha sido uma forma dela se reencontrar com sua formação de origens. A propósito, da forma como a praticou, denota-se até que soube atentar para os novos tempos, para uma modernidade contida na circularidade de impressos.

Referências

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[1] Professora Doutora do Departamento de Ciências Sociais e Humanas (Campus de Currais Novos) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Coordenadora da Base de Pesquisa: Cultura e Educação no Seridó Norte-Rio-Grandense.
[2] Cf. MORAIS, 2005. Nessa referência, a autora trabalha um conceito que vai além da simples descrição dos aspectos físicos e geográficos da região. Nesse sentido, torna-se possível confirmar a idéia de que o Seridó, hoje formado por 23 Municípios, teve uma regionalização historicamente constituída, marcada pelo desmembramento do Município de Caicó.

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