domingo, 8 de novembro de 2015

Uma carta de Paulo Balá.

Juntando lembranças

Publicação: 08/11/15
Woden Madruga
[woden@terra.com.br]

Quase no findar de outubro, lua ainda cheia, me chega nova carta do doutor Paulo Bezerra que continua - nos intervalos que o tempo lhe permite no refúgio da Fazenda Pinturas -  buscando “lembranças antigas” no seu velho baú seridoense.  Desta feita dá prioridades aos professores que marcaram a história cultural do Acary, mestre e educadores que também levaram a sua missão para outras cidades daqueles sertões exercendo outras profissões para melhor servir ao seu povo.  O ilustre missivista e memorialista começa enfileirando assim suas lembranças:

“O Professor Tomás Sebastião de Medeiros (1854-1949) foi um homem de significativa importância na formação cultual do Acari, em todos os sentidos, ao longo dos anos em que prestou inestimáveis serviços à sua terra tanto como professor como tabelião público, fabriqueiro da paróquia, secretário da prefeitura, assim como na sua atividade religiosa e na sua conduta limpa através dos proveitosos anos de sua existência de 95 primaveras, vivendo a última metade do século 19 e a primeira do século 20, anos de profundas alterações.

Filho de Joaquim Cesar de Medeiros e Jesuína Maria de Jesus, esta filha do Padre Tomás de Araújo com Maria Custódia do Amor Divino. Casou com Guilhermina Bezerra de Medeiros (Bibi, 1857-1945), filha de Manoel Bezerra de Araújo Galvão e Ana de Araújo Pereira. Homem claro, alto, forte, esguio, camisa branca de colarinho, gravata de laço, terno escuro, colete preto, botas luzidias, sentado em cadeira de palhinha, com porte de guerreiro, mãos espalmadas sobre as cosas, óculos de grau, a cabeça branca e a barba branca, ascético, sisudo em fotografia tirada entre 25 de abril de 1926 e 6 de janeiro de 1928 com outros homens daquele tempo, num total de 25, e o vigário padre Luiz Carlos Guimarães Wanderley. Vi-o muitas vezes, com acendrado respeito, em sua casa parede-meia com a nossa, onde sua neta Iolanda, minha madrinha de jirau, de saudosa lembrança.

Foram muitos os professores que atuaram no Acari e Caicó, ensinando as primeiras letras, e a fazer conta sendo que na virada do século XX lá estavam além de Tomás Sebastião, Esperidião Medeiros que conheci velhinho em Caicó, Olindina Ernestina da Costa Pereira, esta minha avó materna, regente da Cadeira Elementar Feminina, filha de Ana Maria da Costa Pereira e neta de Luís Magalhães Cirne, 1º Tabelião de Jardim do Seridó, sangue de português. Daí que foi inaugurado o 1º Grupo Escolar do Acari, em 1908, o 2º do Seridó e o 4º do Estado, graças principalmente ao trabalho de Francisco Bezerra de Araújo Galvão, angariando dinheiro para tanto entre amigos e parentes, ele que foi um incentivador das coisas no Acari, inclusive colocando azulejo português no frontão de casa, mudando-se depois para Taperoá.

Porfíria Pires, durante a anos e anos, foi professora das primeiras letras, na sala de frente de sua casa, na rua da Igreja, só para meninos, onde muitas gerações aprenderam cobrindo letras e fazendo conta. Atacada de doença reumática perdeu a mobilidade, tornando-se cadeirante, primeiro em cadeira de braços levada por dois homens, depois já em cadeira de rodas, em seu caminho usual para a igreja. Acari muito lhe deve.

Calpúrnia Caldas de Amorim, nome de escola no Caicó, de Jardim do Seridó mudou-se para Acari com os filhos Olânia, Ônio, depois padre servindo em várias paróquias do Seridó, e Newton quando ensinou no Grupo Escolar e, em sua casa, dava aulas particulares. Na época havia o gosto por peças teatrais que, entre números variados, tinha a apresentação de um “drama” devidamente decorado e ensaiado. Certa vez eu era, entre tantos de outras cores, o lápis preto, mas nem me lembro do que fazendo.  Minha mãe me mandou à residência da professora onde, devidamente instruído, bati-lhe a janela – Ô de casa!,  e de lá de dentro a indagação – Ô de fora. Quem é? E a resposta em cima da bucha – É o lápis preto. No dia da estreia da peça cadeiras eram levadas para o salão do palco, correspondendo ao número de ingressos vendidos. Casa expectador mandava a sua. E eu nem sei até onde aquilo tenha influenciado a menina Rejane Medeiros, nascida no Acari em 1948, e que se fez atriz cinematográfica, uma bela mulher a filmar até na Itália.

Certo é que o velho grupo de 1908, então amputado para dar espaço à estrada central do Seridó, transformou-se na sede do poder municipal e, já agora, do poder legislativo. Assim, uma casa da rua da Matriz, por algum tempo virou sala de aula onde estudei. A classe era só de meninos e o sanitário era a latrina, usança do tempo, constante de um quadrado de alvenaria assoalhado e sobre ele um caixão vazado. Um sem-vergonha escreveu e desenhou na porta coisas indevidas, gerando na diretora Mirtes Bezerra o desejo de identificar o autor, mas, na impossibilidade, castigou a todos: cada aluno, borracha na mão, ia lá apagar uma letra.

O 2º grupo escolar de Acari foi construído por Ângelo Pessoa Bezerra, prefeito nomeado de 23.1.1941 a 31.7.7.1943, lançada a pedra fundamental com ata, nome de pessoas, moedas, e eu sei de memória onde ela está. A esposa dele, Natércia Maranhão, tocava piano, instrumento que a seguia aonde fosse. Sucedeu que na sua mudança, acho que de volta para Natal, o caminhão virou, e adeus piano.  Na terrinha, minha prima Stella Galvão tinha o seu, lembrança de quando estudou em Mossoró.  Ronaldo, filho do casal, era moleque do meu tope e depois estudamos no Atheneu debandando em seguida, eu no rumo do Recife, ele no de Areia, para nos encontramos de novo, diante de sadia e profunda amizade, e em cada um o seu anseio. Mas um dia a notícia estourou na Redinha, que nem uma bomba, o sol não tinha sequer nascido ainda – Assassinaram Ronaldo. E tudo correu na voragem do tempo...

Receba o meu abraço sertanejo.

Paulo Bezerra”

O Soneto Na gaveta dos papéis desarrumados encontro um envelope com letra de calígrafo de alto coturno. É do poeta cearense Virgílio Maia, datado de 14 de maio 1910. Na folha datilografada está escrito “Soneto com mote de Woden Madruga. Para Paulo Balá”:

Craveja o céu de sempre outro ano escasso/ Nos adustos dos mapas potiguares;/ Magra sede se mede nos olhares/ Dos bichos tristes de tão triste passo. // Luz de foto se amplia pelo espaço, / Açambarcando léguas de hectares, / Por decreto ferrando rês e os ares/ Do lasso Seridó de sola e laço. // Na Serra do Doutor, eis solitário/ Trovão acode à derradeira crença, / Desdobrando aos viventes trom de afago // Água não vem, nem tem; todo o cenário/ Propõe pouca esperança na sentença: / Um chuvisco, uma chuva e um relâmpago. ”

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