quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Uma postagem diferente: os intelectuais de Currais Novos.

INTELECTUAIS E A EDUCAÇÃO NA CURRAIS NOVOS DOS ANOS 1920/1930
Fonte: Google.
Edilma da Silva Cortez – Universidade Federal do Rio Grande do Norte
O estudo intitulado Currais Novos e os ideais progressistas dos galvanopolitanos
(1920 / 1930), constituinte da Base de Pesquisa Cultura e Educação no Seridó Norte–Rio-
Grandense, tem como objetivo conhecer e compreender a Modernidade que foi produzida em
Currais Novos / RN nos anos 20 e 30 do século findo, buscando identificar as idealizações e
os autores dessa Modernidade, tendo em vista analisar as práticas culturais e os modos como
esses autores pensaram o novo e instituíram mudanças, enfocando, especialmente, o sentido
que dispensaram à questão da Educação.
Como suporte, trabalha com a concepção de Modernidade entendida,
fundamentalmente, como um novo tipo de racionalismo, em vínculo com uma vida social
subsequente ao desenvolvimento capitalista industrial. Nesse sentido, compreende a
Modernidade como um fenômeno característico da cultura ocidental, constituindo-se
enquanto um corpo cultural novo, movido por lógica interna própria de sociedade que, no
campo da Educação, formalizou-se sob o ideário da Escola Nova. Como base empírica, utiliza
jornais que circularam nessa cidade nas décadas de 1920 e 1930, a saber: O PORVIR, O
GALVANÓPOLIS e NINHO DAS LETRAS, os quais foram selecionados para análise dos
valores e práticas culturais, neles contidos, dos intelectuais responsáveis pela concepção e
divulgação do ideal de Modernidade nesse Município.
Um desses intelectuais foi Ewerton Dantas Cortez, sendo sua produção jornalística
analisada, neste estudo, a título de exemplificação. Essa escolha não se deu de forma
aleatória, haja visto a identificação de seu discurso com as idealizações socioculturais,
políticas e econômicas dos pioneiros da proposta de Modernidade nesse Município, nas
primeiras décadas do século passado. Procurou-se, pois, explicitar até que ponto os textos do
referido autor contribuíram para a divulgação desse novo ideal, e em que medida ele pode ser
considerado um pioneiro da Modernidade curraisnovense.
A importância desse estudo reside no fato de permitir que antigas fontes sejam
(re)visitadas, e, a partir delas, novas reflexões e novos comentários possam ser concebidos,
contribuindo, assim, para uma (re)leitura da História de Currais Novos. Isso porque, quando
considerada a escrita da História recente desse Município, verificou-se o predomínio de um
referencial substanciado no senso comum, o qual não condiz com as observações feitas por
este estudo a partir do material empírico levantado. Nesse sentido, a história que pretende-se
(re)construir, ainda que em fragmentos, é entendida como uma contribuição à História dessa
cidade, por empreender novas revelações, e sobre essas, tecer novas interpretações,
enriquecedoras dessa mesma História.
O primeiro jornal a ser examinado foi O PORVIR – Órgão Humorístico, Literário e
Noticioso, que circulou de 02 de maio de 1926 a 20 de janeiro de 1929, com um total de 39
edições. A 1ª edição apresentava a seguinte diretoria: diretor: Nelson Geraldo, e redatores:
Ewerton Dantas Cortez e Manoel Rodrigues de Melo; a 2ª, de 30 de maio de 1926, trouxe
algumas mudanças na direção, quando Manoel Rodrigues de Melo assumiu o cargo de
Gerente; e a 6ª, de 03 de outubro de 1926, apresentava, como secretário, Jayme Carneiro
Barreto. A diretoria ficou assim constituída até 10 de março de 1928, 26ª edição do jornal,
quando, com a saída de Nelson Geraldo, Ewerton D. Cortez passou a Diretor, Manoel R. de
Melo a Redator–Gerente, permanecendo Jayme C. Barreto como Secretário. Na ocasião,
alterou-se também o nome do jornal, que passou a se chamar O PORVIR – Órgão
Independente, Literário e Noticioso. Essa diretoria exerceu suas funções até 20 de janeiro de
1929, data da última edição do jornal.
O Imaginário Moderno em Currais Novos
No Brasil, a Proclamação da República, em 1889, constituiu o marco inicial para a
construção de um paradigma sociocultural e econômico de país que fosse capaz de absorver
as idéias centrais e atender as exigências do Capitalismo em expansão, sendo resultado de um
projeto idealizado por militares, literatos e clérigos. Intelectuais, em sua maioria, de origem
humilde, que buscavam romper com a elite aristocrática e seu sistema de governo, o Império,
a fim de alcançarem status social mais elevado e maior representatividade política. Entretanto,
o fim do Império como instituição não representou o fim dos valores e práticas culturais da
sociedade imperial e escravocrata. Dessa forma, o período que vai de 1889 a 1930, conhecido
como República Velha, foi marcado pela fraqueza de um poder central e pela presença de
oligarquias regionais que se revezavam no poder , graças ao poderio econômico de dois
estados: São Paulo e Minas Gerais. Era a chamada política do Café–com–Leite.
A década de 1920 caracterizou-se pela crise dessa estrutura sociocultural, econômica e
política. Crise essa, que culminou com a Revolução de 1930 e a ascensão de Getúlio Vargas
ao poder. Nesse período, buscou-se implementar um novo modelo de Brasil, inserido no plano
urbano–industrial exigido pela ordem social em expansão, além da elaboração de um discurso
de apologia ao novo, pelos intelectuais que surgiam, em detrimento àqueles que idealizavam a
República. Esse novo grupo de intelectuais era formado, sobretudo, por médicos (porque era
preciso mudar os hábitos sanitários e higiênicos da população para impor hábitos mais
“civilizados”), engenheiros (porque a reformulação do espaço físico e a urbanização
influenciariam, de algum modo, na organização social) e educadores (porque era preciso
reconstruir as consciências, adaptando-as aos novos padrões de civilização), especialistas em
áreas estratégicas, porque assim exigia o novo desenvolvimento industrial que então se
instalava.
Em Currais Novos, pelo menos nos discursos, não foi diferente, apesar de suas
especificidades. O período compreendido entre 1920 e 1930 caracterizou-se por uma grande
efervescência cultural e sentimento de renovação. A maioria das matérias veiculadas pelo
jornal O PORVIR faziam apologia ao progresso e à civilização, assim como divulgavam e
elogiavam os avanços já estabelecidos na região: O surto de progresso que avassala na hora
presente os nossos sertões é, de fato animador. (O Porvir, nº34, p.01, 16/09/1928) e a
humanidade como que numa fase de acentuadas realizações, espreita consecutivamente o
surto de progresso que se desenvolve em nosso Estado.(O Porvir, nº39, p. 05, 20/01/1929).
Além disso, o ideal de Modernidade para Currais Novos foi elaborado por novos
intelectuais que, como veremos, enquadravam-se, com precisão, no estereótipo do intelectual
brasileiro dos anos de 20 e 30, e, ao mesmo tempo, apresentavam peculiaridades em sua
origem e formação, específicas da realidade curraisnovense.
Origem e formação dos intelectuais curraisnovenses
No Brasil, ao longo dos anos 1920/1930, a palavra moderno ganhou status de uso
quase obrigatório no ambiente intelectual de então. Isso porque ser moderno significava, antes
de tudo, tentar assumir um lugar prestigiado no debate científico ou artístico1, ou seja,
assumir, na sociedade, a função de intelectual. Sobre o assunto, Gramsci2 estabelece que
qualquer atividade ou função exigem o mínimo de técnica, ou seja, de uma atividade
intelectual criadora, para ser desempenhada. Nesse sentido, pode-se dizer que todos os
homens são intelectuais, mas nem todos os homens desempenham na sociedade a função de
intelectuais. No que se refere à origem e formação dos intelectuais, enquanto classe social, o
referido autor afirma que essas podem ser diversas. Porém, destaca duas como sendo as mais
importantes: de origem orgânica, quando um determinado grupo social cria para si uma
categoria de intelectuais , que possa lhe dar homogeneidade e consciência de sua função; e, de
origem tradicional, quando um grupo social, surgido a partir do desenvolvimento de uma
determinada estrutura, encontra uma categoria de intelectuais pré–existente, os quais se
posicionam enquanto representantes de uma continuidade histórica. Quanto ao tipo, os
intelectuais podem caracterizar-se enquanto urbano, criados com o desenvolvimento da
1 HERSCHMANN e PEREIRA, 1996.
2 GRAMISCI, 1978.
indústria e ligados às suas vicissitudes, ou rural, ligados às massas sociais camponesas e
pequeno–burguesas das cidades ainda não movimentadas pelo sistema capitalista industrial.
Entre os intelectuais curraisnovenses das décadas de 20 e 30, pioneiros e com posições
definidas de Modernidade, encontramos jovens oriundos das famílias mais representativas da
cidade, enviados por seus pais para estudarem na capital do Estado, e que, ao retornarem,
traziam um discurso de apologia à civilização e ao progresso, no qual colocavam-se como
detentores de um poder de mudança que, reconhecendo a forma como a população estava
presa à tradições, acreditava ser capaz de conduzi-la à Modernidade: Galvanópolis precisa,
pois, acompanhar o grande evolutivo da época, resolvendo momentosos problemas para
ascender a brilhante posição que lhe está reservada.(O Porvir, nº03, p.02, 27/06/1926). Os
benefícios a partir dessa postura recaem, principalmente, sobre segmentos sociais
representativos do sistema latifundiário e, com menos intensidade, sobre os setores
imediatamente ligados a ele, quais sejam, comércio, burocracia pública e privada, além de
certas atividades profissionais autônomas. Dessa forma, podemos dizer que os pioneiros da
Modernidade curraisnovense eram filhos dessas duas classes, ou seja, tanto daquela
tradicionalmente existente, símbolo de uma velha ordem econômica e representada pelos
latifundiários, quanto daquela que surgia em decorrência do processo de desenvolvimento
urbano, ao qual esses mesmos pioneiros teciam elogios. O caso curraisnovense constitui,
portanto, uma particularidade no que se refere à origem e formação de seus intelectuais, haja
visto, por um lado, possuírem uma mentalidade arraigada à antigos princípios, e, por outro,
mostrarem-se imbuídos e portadores de uma nova cultura, inaugurada junto com a concepção
de vida urbana. Essa urbanidade, apesar de seus novos traços, trazia consigo a marca da
permanência de velhas estruturas econômicas, pois, não havia ainda, em Currais Novos, uma
base industrial na qual os intelectuais pudessem se firmar. Por outro lado, é inegável que
novas oportunidades profissionais surgiam com o desenvolvimento e diversificação da
economia de mercado: Entre outros ramos de indústrias que merecem o nosso concurso, em
face das possibilidades lucrativas que oferecem, temos o aproveitamento das sementes
oleaginosas.(O Porvir, nº22, p. 01, 11/12/1927).
Assim, a marca da formação moderna desses intelectuais se dava pela identificação
com o discurso e práticas culturais dos novos grupos sociais que buscavam firmar-se naquela
época, ou seja, a nova burguesia; enquanto que a marca da formação tradicional era mantida,
uma vez que esses intelectuais portavam resquícios de uma concepção de sociedade assentada
sob uma política de colonização exploradora, cujas reminiscências, em Currais Novos, se
faziam sentir sob a manutenção de uma cultura de coronelismo em vínculo com o latifúndio,
dando, dessa forma, uma certa continuidade histórica à essa política. Isso significa dizer que,
apesar dos discursos de apologia ao novo, ao moderno, e das novas práticas econômicas e
socioculturais, o poder político continuou a ser exercido pelas famílias tradicionais, através de
coronéis, aos quais os pioneiros da Modernidade estavam ligados por laços de parentesco ou
amizade. Portanto, podemos dizer que esses intelectuais classificam-se, quanto à formação,
em tradicional e orgânica, e, quanto ao tipo, por isso mesmo, rural e urbano, simultaneamente.
Eis aí o grande paradoxo dos intelectuais curraisnovenses dos anos de 1920 e 1930.
Intelectuais e Educação em Currais Novos
Para os intelectuais curraisnovenses, possuidores de um discurso apologético ao
progresso e à civilização, no qual se imbuíam de um poder de mudança, capaz de retirar o
povo da situação de estranheza perante a Modernidade que difundiam, a Educação era de
suma importância, pois somente através dela seria possível a instalação definitiva do
progresso nessa cidade: Incontestavelmente é a instrução o fator único que impulsiona esta
marcha ascensional na qual a inteligência sempre triunfa. (O Porvir, nº11, p. 01,
03/04/1927). Por este motivo, empreenderam inúmeras campanhas em prol da Educação,
sendo cada qual considerada a mais útil e nobre (O Porvir, nº03, p. 03, 27/06/1927) daquelas
que visavam os interesses da nação: Não se compreende que um povo tenha energia,
vitalidade, inteligência, perseverança, até mesmo CONSCIÊNCIA na consumação de seus
atos, quando este povo seja IGNORANTE, seja ANALPHABETO.(O Porvir, nº13, p. 01,
31/05/1927). Trata-se de uma postura convencional entre os intelectuais brasileiros dos anos
20 e 30, que eram formados por especialistas, principalmente, nas áreas da Engenharia,
Medicina e Educação, esta última considerada o germem do bem (O Porvir, nº25, p. 02,
15/02/1928). Áreas essas, exigidas por e vinculadas ao desenvolvimento urbano - industrial
em expansão, ao qual justificavam e davam estabilidade.
Oculto sob esse ideal de uma Educação redentora, observou-se, como traço do
discurso desses intelectuais, a concepção escolanovista, na qual a Educação assumiria a
função de um instrumento para se obter uma revolução dentro da ordem, isto é, a reelaboração
de valores e práticas culturais de acordo com os ideais do novo desenvolvimento social, sem
haver alterações na estrutura de poder. Em suma, a Educação funcionaria como um meio de
homogeneização cultural, uma vez que seu propósito era reconstruir as consciências,
adaptando-as à ideologia dominante, a qual era, desse modo, legitimada. Esse processo de
reconstrução da consciência popular representaria, entre outros aspectos, o fim da luta de
classes, pois supunha-se que a nova educação, ensinada gratuitamente nos bancos escolares,
veicularia a idéia de que todo homem, seja qual for sua classe social, participa de um processo
no qual o maior beneficiado é o Brasil enquanto nação. Assim, o trabalho proletário era
imprescindível para o crescimento econômico do país, mas necessitava da burguesia para
controlá-lo e conduzi-lo. Desse modo, a Educação retiraria do proletariado a capacidade de
argumentar contra a exploração capitalista, atuando, portanto, como um Aparelho Ideológico
do Estado, daí a necessidade de o ensino ser gratuito. A escola é incontestavelmente o
primeiro favor que a criança recebe do Estado. Causa sublime de todo o bem: da felicidade,
da harmonia e da grandeza de um povo, é a escola primária de tanta influência nas classes
laboriosas, que em grande parte, depende dela o futuro de uma raça inteira de um país.(O
Porvir, nº24, p. 03, 19/01/1927). Justifica-se, assim, as inúmeras campanhas empreendidas
pelos intelectuais curraisnovenses em benefício da Educação.
Essa postura deve-se, entre outros aspectos, ao estereótipo do brasileiro forjado pelos
novos intelectuais: mestiço, sensual e malandro. O povo brasileiro, incapaz de organizar-se
coletivamente, dada a sua pluralidade cultural, necessitava de um poder superior, que fosse
capaz de guiá-lo rumo ao progresso. Esse pensamento justificou, no campo político, a
implantação de um Estado autoritário, o Estado Novo, em 1937; e representou, no âmbito
educacional, o discurso da Escola Nova.
Um caso particular: Ewerton Dantas Cortez
Ewerton Dantas Cortez era filho do Coronel Joaquim Pegado Dantas Cortez e de D.
Guilhermina Dantas Cortez. Nasceu no berço de uma das mais representativas famílias
curraisnovenses, ligada à agropecuária e à política locais. Sua juventude foi marcada pela
participação constante na vida intelectual da cidade. Já nos primeiros meses de 1926, ao lado
de um grupo de estudantes, elaborou um jornal que foi apresentado ao professor Gilberto da
Cunha Pinheiro. Tratava-se do número zero do jornal O PORVIR. O prof. Gilberto Pinheiro
aprovou a idéia, incentivou a publicação do mesmo, e, em 02 de maio do mesmo ano foi
colocada nas ruas a 1ª edição do jornal, intitulado O PORVIR – Órgão Humorístico, Literário
e Noticioso. A diretoria foi assumida por Nelson Geraldo, enquanto que Ewerton assumiu a
redação, inicialmente, ao lado de Manoel Rodrigues de Melo (ou Manoel Rodrigues Filho), e
depois, sozinho. Função essa, que exerceu até 10 de março de 1928, quando assumiu o cargo
de Diretor. Na ocasião, o jornal passou a se chamar O PORVIR – Órgão Independente,
Literário e Noticioso. Além de redator e, posteriormente, diretor de O PORVIR, Ewerton D.
Cortez assinou diversas matérias como colaborador no referido jornal, adotando, além do
próprio nome, os seguintes pseudônimos: E.C. e Ewerdantez. Colaborou, ainda, em outros
periódicos da cidade, como, por exemplo, O GALVANÓPOLIS, no qual assinou como G.
Nerino, Ewerdantez e Ewerton D. Cortez; e NINHO DAS LETRAS, assinando como Ewerton
Cortez.
Muito admirado por seus contemporâneos, Ewerton foi tema de diversas notas
publicadas em O PORVIR, as quais sempre traziam elogios aos seus talentos e virtudes:
Ewerton já não é um vulto desconhecido nas lides jornalísticas, porquanto há muito vem
atestando a sua elevada cultura, a sua mentalidade e dedicação às letras, sendo portanto, o
sustentáculo principal d’O Porvir.(O Porvir, nº20, p. 01, 08/11/1927). Mereceu, inclusive, a
publicação de poesias dedicadas à sua pessoa, intituladas Veronal, de Oscar Macedo (O
Porvir, nº24, p. 02, 19/01/1928), O Operário, de Xavier de Araújo (O Porvir, nº02, p. 02,
20/07/1928) e Pranto, de L. Lobato (O Porvir, nº34, p. 01, 16/09/28). A nós não é possível
afirmar ainda o real motivo pelo qual esses poemas foram dedicados ao jovem Ewerton, mas
acreditamos que sua influência social e, sobretudo, o fato de ele fazer parte do corpo editorial
do jornal constituía-se enquanto garantia de publicação dessas poesias, geralmente de autores
desconhecidos ao grande público, em um meio de comunicação que, para os padrões da
época, era bastante abrangente.
A compreensão da produção jornalística de Ewerton Cortez só é possível mediante a
análise das características gerais do intelectual brasileiro dos anos de 1920 e 1930, e da
condição especifica do intelectual curraisnovense do mesmo período. Ewerton fazia parte de
uma nova geração de intelectuais, que dedicou-se à elaboração de um discurso de elogio e
divulgação dos ideais de progresso e civilização, ajudando a criar um novo modelo de Brasil,
pautado sob o novo paradigma moderno. A maioria dos intelectuais brasileiros das décadas de
1920 e 1930 buscava construir, sob a égide desse novo paradigma, a identidade cultural
brasileira. Identidade essa, baseada em valores que distinguissem o homem brasileiro do
homem europeu, para os quais foram determinantes dois critérios: raça e sexualidade.
Difunde-se, assim, um estereótipo de brasileiro, definido como mestiço (pois era fruto da
miscigenação de várias raças e culturas), sensual (a miscigenação intensificou a sensualidade
nativa) e malandro (incapaz de organizar-se coletivamente, preferindo sempre as soluções
mais fáceis). Por outro lado, quando consideramos que o pensamento tido como moderno foi
importado da Europa, e que o que tencionava-se fazer era colocar o país em pé de igualdade
com os europeus, no que diz respeito à organização social, percebemos a existência de uma
contradição no próprio cerne do discurso de apologia à Modernidade veiculado por esses
intelectuais. Isso porque os mesmos foram moldados sob a égide de um dualismo, uma vez
que, por um lado, consideravam-se fundadores e reveladores da identidade cultural brasileira,
assumindo assim, uma postura autoritária; e, por outro, valorizavam a ambigüidade, fruto da
miscigenação, como elemento constitutivo dessa mesma identidade, numa tendência
antropofágica, no sentido de devorar a cultura estrangeira em benefício da cultura nacional,
libertando-a dessa influência importada, assumindo assim uma postura libertária3.
O diálogo autoritário x libertário, ao assumir maiores proporções, também se faz
presente na produção de Ewerton Cortez. Observamos isso, sobretudo, nos textos dedicados
ao debate da condição feminina. No Rio Grande do Norte, em fins de 1927, foi concedido,
pelo então Presidente do Estado, Juvenal Lamartine, o direito de voto às mulheres. Essa
decisão causou enormes polêmicas. Houve quem a criticasse acirradamente, mas houve
também quem adotasse uma postura menos dogmatizada e mais moderna. É o caso de
Ewerton. Apesar disso, seus discursos acerca do voto feminino caem em constantes
paradoxos, o que justifica-se de duas formas: 1) o intelectual brasileiro dos anos 20 e 30 foi
moldado a partir de uma ambigüidade; e, 2) o intelectual curraisnovense apresenta uma
gênese paradoxal, pautada em especificidades já descritas anteriormente: Efetivamente não
deve haver mesmo diferença alguma entre os dois sexos, como muitos, por egoísmo talvez
queiram impor(...)Portanto (...) deviam seguir paralelamente a estrada da vida, sem certos
abusos de direitos pois o homem é e sempre será o HOMEM, e a mulher nunca deixará de ser
o que é... (...) A primeira vitória fecunda em nosso continente coube às patrícias norte-riograndenses,
que acabaram de alcançar o direito ao voto, portanto a cidadania
independente!(O Porvir, nº22, p. 01, 11/12/1927).
Como vemos, neste fragmento a marca da formação paradoxal do intelectual Ewerton
Cortez se revela pelo diálogo autoritário X libertário em seu discurso. Autoritário na medida
em que afirma enfaticamente o homem é e sempre será o HOMEM e a mulher nunca deixará
de ser o que é..., pois, ao grafar a palavra homem com letras maiúsculas e utilizar reticências
após insinuar qual é a posição da mulher, da qual ela nunca poderá abdicar, estabelece uma
relação de superioridade X inferioridade entre os dois sexos. O autor defende, aqui, uma
postura autoritária e, ao mesmo tempo, tradicionalista, que se choca com a afirmação anterior,
não deve haver diferença alguma entre os dois sexos, como muitos, por egoísmo talvez
queiram impor, de tendência puramente libertária, inclusive por constituir-se uma crítica
àqueles que não admitem o soerguimento intelectual, social e político da mulher.
Além disso, alguns de seus textos convergem para a crônica, aqui, com o sentido de
um texto de orientação jornalística; concebido de forma livre e pessoal; que tem como assunto
um fato ou idéia da atualidade, no caso, os novos valores de progresso e civilização. Uma das
3 HERSCMANN e PEREIRA, 1996.
matérias mais representativas do autor, nesse sentido, intitula-se O que é hoje Galvanópolis...,
da qual transcrevemos alguns fragmentos: Empreendi um passeio somente para contemplar a
esplendorosa paisagem (...)Galvanópolis é uma cidade de topografia realmente majestosa e
que nestes últimos tempos tem passado por uma série de aperfeiçoamentos (...), não obstante
o agricultor sertanejo ainda está em estado de muito atraso, (...).cousa esta que não pode ser
admitida em parte alguma, quando a ciência, o progresso e a civilização em tudo penetrou
(...), mas essas irregularidades não são motivos que venham a ofender diretamente o nosso
progresso(...)Que é hoje Galvanópolis? É uma futurosa cidade, onde a instrução, o trabalho
e a civilização têm suas sementes bem arraigadas no espirito de seus habitantes(...) é uma
cidade que evolui a passos agigantados, tendo de ascender, em breve à meta da
perfectabilidade. (O Porvir, nº07, p.02, 24/10/1926).
Destacam-se no texto: a presença do pensamento iluminista, revelado pela crença na
Perfeição enquanto último estágio evolutivo na História de qualquer povo e nos ideais de
progresso, desenvolvimento e civilização; a crença na Educação enquanto elemento
fundamental e decisivo para a concretização desses ideais; e, ainda, a proposta da Escola
Nova de revolução dentro da ordem e fim da luta de classes. A situação explica-se melhor da
seguinte forma: já foi dito que o educador, enquanto intelectual/especialista criado para
atender uma necessidade do capitalismo industrial, tinha por função reconstruir as
consciências, adequando-as aos novos padrões de civilização. Trata-se de uma proposta da
Escola Nova, que negava a luta de classes, convertendo-a em cooperação solidária, e
colocando-a sob novas bases, as quais afirmavam que a divisão entre proletariado e burguesia
era apenas uma necessidade da Modernidade. E Modernidade era sinônimo de progresso, de
prosperidade para a nação. O trabalhador, educado para compreender-se enquanto elemento
fundamental no processo modernizador, perderia sua autonomia. Seria o fim da luta de classes
– a grande reforma - que permitiria à burguesia auto-conservar-se no poder, pois as mudanças,
propostas pelo ideário moderno, seriam produzidas e, simultaneamente, controladas.
Em síntese, podemos determinar e situar os intelectuais que encarregaram-se de
difundir o ideal de modernidade em Currais Novos, nos anos de 1920 e 1930, como sendo
jovens nascidos em famílias tradicionais; educados em uma realidade diferente daquela de
que são originários; e que tiveram contato com a proposta da Modernidade e da Escola Nova,
elaborando um discurso de reconhecimento e elogio ao progresso e a civilização, típicos da
pedagogia escolanovista e do pensamento moderno, bem como de todas as propostas que
surgiram como legitimação à ascensão do Capitalismo Industrial. No que se refere à Ewerton
Dantas Cortez, é possível enquadrá-lo tanto nos padrões que caracterizavam o intelectual
brasileiro dos anos 20 e 30, quanto no perfil peculiar do intelectual curraisnovense, cuja
trajetória foi paradoxal, uma vez que, assim como os demais intelectuais seus
contemporâneos, mostrava-se defensor de um ideal de mudança, e ao mesmo tempo,
permanecia ligado à tradição, representada pelo latifúndio; traços esses, que se revelam
através das inúmeras ambigüidades observadas em sua produção jornalística.
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